quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Tese avalia experiências de mulheres que passaram pela prática do aborto


Para ajudar a preencher essas lacunas, a tese avaliou mulheres usuárias de serviços de saúde pública

O aborto clandestino é uma prática ilegal que ocorre maciçamente no Brasil, sendo a quinta maior causa de mortes entre adolescentes. Por sua condição de ilegalidade, o procedimento é um tema difícil de ser pesquisado. Pouco se conhece sobre as mulheres ou casais que recorrem a ele, sobre como é realizado, qual o número exato de abortos que são praticados e quais as consequências dele na vida das pessoas que o executam. Para ajudar a preencher essas lacunas, a pesquisadora Simone Mendes de Carvalho, em tese recém-defendida na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), avaliou relatos de mulheres entre 18 e 29 anos usuárias de serviços de saúde pública que passaram pela experiência.

" O aborto clandestino é responsável pela interrupção de um grande número de gestações indesejadas em nossa sociedade e, por tratar-se de uma prática realizada sem nenhum respaldo legal, muitas mulheres se submetem a realizá-lo em condições precárias, acarretando um expressivo número de mortes maternas evitáveis, bem como infecções e infertilidade, entre outros agravos à saúde" , comenta a pesquisadora. " A prática deve ser tratada como um problema de saúde pública que afeta a vida de várias mulheres, dentre elas as jovens" .

As entrevistas foram realizadas com 16 mulheres selecionadas em unidades do Programa Saúde da Família do município de Cabo Frio (RJ). As participantes relataram um total de 44 casos de gravidez, sendo que destes, 22 resultaram em abortos. A idade na ocasião do aborto variou entre 14 a 29 anos, sendo maior na faixa etária entre 18 e 25 anos e reduzindo após os 26 anos. Em relação ao numero de filhos na ocasião da entrevista, a variação foi entre zero a quatro, sendo que a maioria tinha apenas filho, e apenas uma tinha quatro filhos. Das que tinham mais de um filho a maioria era do mesmo relacionamento.

No que se refere à situação relacional com o parceiro na ocasião da gravidez, dentre o total de 44 casos, 19 ocorreram em contextos em que essas mulheres moravam com o parceiro, tendo ocorrido seis casos de aborto; desta forma, 25 casos ocorreram em contextos em que essas mulheres não moravam com o parceiro, ocorrendo 16 casos de aborto. " Podemos perceber que o numero de abortos é maior nas situações em que as mulheres não moravam com os seus parceiros, traduzidas em relações instáveis como namoro, ou 'ficar'" , afirma a pesquisadora.

A situação econômica foi outro fator importante que apareceu nos relatos como um agravante para a decisão de realização do aborto. As mulheres, que em sua maioria classificaram sua situação como péssima ou ruim, apontaram que a chegada de uma criança altera os padrões de consumo familiar, acarretando em mais gastos e despesas. " A maioria das entrevistadas (12) não trabalhava no advento da primeira gravidez" , explica Simone. Em três dos casos as mulheres também não podiam contar com o parceiro devido às relações instáveis e não aceitação da gravidez por dele" . Ela ainda aponta que a rejeição masculina ocorreu por diversas razões, como financeira, o fato de já ter filho ou pela imaturidade para ser pai. Alguns homens também se negaram a revelar uma posição deixando a decisão para a parceira.

A pesquisadora conta que em apenas um caso a entrevistada não contou para ninguém sobre a gravidez que, neste caso, resultou em aborto. Nos outros 15 casos, a gravidez foi compartilhada com amigos e familiares. " A decisão de realizar o aborto não foi tomada de maneira isolada, ou seja, essas mulheres compartilharam com outras pessoas do seu convívio a decisão em abortar" , esclarece a pesquisadora. " Isso mostra que a prática do aborto não é individualizada, mas um processo que envolve familiares, amigos e o próprio parceiro e esses na maioria das vezes exercem uma grande influência na decisão" .

Falta de conhecimento sobre procedimentos abortivos pode incentivar a prática

Em seu estudo, Simone também consultou suas entrevistadas sobre métodos contraceptivos. Os resultados mostraram que a idade média da primeira relação sexual dessas mulheres foi 14 anos e que a maioria não utilizou nenhum tipo de anticoncepcional. " Isso mostra a vulnerabilidade dessas mulheres em relação a uma gravidez indesejada e o aborto, bem como a infecção por doenças sexualmente transmissíveis" , comenta a pesquisadora. Além disso, ela acrescenta que o não conhecimento desses métodos na época foi narrado por 5 das 16 mulheres, um número significativo se forem consideradas a difusão de informações pela mídia, campanhas preventivas e de educação sexual. Ainda sobre a utilização de anticoncepcionais, quando abordadas sobre sua utilização quando souberam da sua condição de gravidez, a maioria (14) respondeu que não utilizavam nenhum método e as que relataram usar disseram que algo aconteceu de errado na sua utilização ou falha do método.

Quando questionadas sobre como obtiveram informações sobre métodos contraceptivos, a maior parte respondeu que foi por conta própria; as outras citaram que foi por intermédio de profissionais de saúde, amigos, do próprio parceiro ou escola. " Quando questionadas sobre a facilidade ou dificuldade em evitar a gravidez, apenas uma relatou ser difícil devido ao esquecimento em tomar a pílula" , diz a pesquisadora. " Notamos assim que a utilização dos métodos não está ligada apenas à informação sobre a existência ou não do método, mas também da sua adequação ao corpo e ao estilo de vida dessa mulher" .

No que diz respeito ao procedimento de intervenção em si, Simone alerta que, na ocasião do primeiro aborto, a maioria das entrevistadas não obtinha informações corretas de como realizá-lo e as possíveis consequências, já conheciam alguém que havia recorrido ao aborto em algum momento de suas vidas. " Portanto, a prática do aborto não era algo distante ou desconhecido dessas mulheres, e esse conhecimento era proveniente de amigas e família, inclusive a própria mãe" , esclarece a pesquisadora. " No entanto, com a vivência de um ou dois abortos, as informações ainda não eram suficientes mesmo" .

De acordo com a pesquisadora, os 22 casos de aborto foram realizados em condições não confiáveis: pela ingestão de comprimidos que estimulam contrações ou chás abortivos (baseados em receitas caseiras e mitos populares), em clínicas de fundo de quintal ou clandestinas, com profissionais não qualificados e técnicas duvidosas quanto à assepsia e manuseio dos materiais. " Todos esses abortos ocorreram em cenários inseguros, onde a mulher tinha pouca ou nenhuma informação sobre o que ia acontecer e sobre os riscos que correria ao realizar o aborto. Essas mulheres ficaram expostas a um perigo eminente de complicações graves e até a ocorrência de morte" , elucida Simone. Do total de casos, 12 tiveram algum tipo de complicação. As mais citadas foram hemorragia, cólica, desmaio, febre e dores.

Em relação à procura de algum serviço de saúde após a prática, em dez casos as entrevistadas responderam afirmativamente, por conseqüência das complicações. " A atenção recebida nesses locais foi descrita, na maioria dos casos, como péssima ou ruim, sendo ressaltadas a discriminação e o atendimento inadequado pelos profissionais de saúde. Em apenas dois casos a atenção recebida foi classificada pelas entrevistadas como sendo boa e adequada, porém, na opinião delas, os profissionais fingiram que não sabiam que se tratava de um aborto provocado" , destaca a pesquisadora.

" Percebe-se que alguns desses serviços não estão preparados para o atendimento da mulher em situação de pós-aborto. Esse quadro mostra, portanto, a necessidade de ações estratégicas que garantam condições desejadas e seguras para as práticas sexuais e reprodutivas de adolescentes e jovens" , aponta Simone. " No que se refere aos adolescentes mais jovens, enfrentamos grandes desafios devido à necessidade em ampliar e oferecer acesso aos serviços de saúde com atendimento integral, antes mesmo do início de seu primeiro intercurso, com garantia de privacidade, confiabilidade e atendimento que dê apoio, sem emitir juízo de valor" .


Fonte: FIOCRUZ

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